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domingo, 2 de abril de 2023

Reflexão para o Domingo de Ramos

 

Jesus cai sob o peso da Cruz, por Karl Geiger.

"Uma bela oração para o Domingo de Ramos"

 

“Deus eterno e todo-poderoso, que, para dar ao gênero humano um exemplo de humildade a ser imitado, fizestes o nosso Salvador assumir a carne e suportar a Cruz: concedei-nos, propício, que mereçamos viver suas lições de paciência e associar-nos à sua ressurreição.” 

No calendário [romano] tradicional, o Domingo de Ramos continua o tema da Paixão e da Cruz, começado há uma semana [i], inaugura a Semana Santa e faz olhar com esperança para o Domingo de Páscoa, nossa luz no fim do túnel quaresmal. Tudo isso fica evidente na Coleta da Missa: 

Omnípotens sempitérne Deus, qui humáno géneri, ad imitándum humilitátis exémplum, Salvatórem nostrum carnem súmere et crucem subíre fecísti: concéde propítius; ut et patiéntiæ ipsíus habére documénta et resurrectionis consórtia mereámur. Per eúndem Dóminum nostrum. — Deus eterno e todo-poderoso, que, para dar ao gênero humano um exemplo de humildade a ser imitado, fizestes o nosso Salvador assumir a carne e suportar a Cruz: concedei-nos, propício, que mereçamos viver suas lições de paciência e associar-nos à sua ressurreição. Pelo mesmo Cristo, Senhor nosso [ii]. 

A Coleta é um excelente exemplo do que poderíamos chamar de “eructação espiritual”. Os debates acerca das chamadas “duas formas” do rito romano centram-se muitas vezes em análises quantitativas do número de referências explícitas à Bíblia, como se mais passagens bíblicas fossem o mesmo que liturgia melhor. 

Historicamente, no entanto, as liturgias apostólicas se desenvolveram em função de outras prioridades. Obviamente, a Sagrada Escritura é citada no Intróito, nas leituras etc.; mas, além de proclamar ou entoar passagens bíblicas para nos instruir ou canalizar nossas emoções e causar a oração, a liturgia inclui orações que são efeitos da devida apropriação da Escritura. 

O Salmo 44, 2, na tradução clássica do Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, é: “Saiu do meu coração com grande ímpeto uma palavra boa”, mas uma tradução mais literal seria: “Meu coração arrotou [eructavit] uma boa palavra”. A ideia é que, ao ouvir e guardar a Palavra de Deus, nós nos apropriemos dela (o que significa literalmente torná-la nossa) e, depois de ter digerido adequadamente esses alimentos verbais do alto, liberemos nossas próprias boas palavras na vida, na oração ou na pregação. Santo Agostinho escreve: 

Comes quando aprendes; arrotas quando pregas: todavia, arrotas o que comeste. Finalmente, aquele ávido conviva, o apóstolo João, a quem não bastava a própria mesa do Senhor, mas precisava reclinar sobre o peito do Senhor (cf. Jo 13, 23) e haurir os segredos divinos daquele esconderijo, que arrotou? “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus” (Enarratio in Psalmum 145, 9). 

Assim como a Bíblia é o produto de um bom “comer” e “arrotar” da Revelação divina, também as orações da sagrada liturgia são o produto de um bom “comer” e “arrotar” da Bíblia. Vemos esse princípio em ação na Coleta do Domingo de Ramos, que se apropria do que ensina o Novo Testamento sobre Jesus Cristo e o rearticula, especialmente dois versículos: “Humilhou-se [humiliavit] ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2, 8); e “Também Cristo pa­deceu por vós, deixando-vos exemplo [exemplum] para que sigais os seus passos” (1Pd 2, 21). 

Essas duas alusões prenunciam também a adoração futura: o primeiro versículo ganha destaque no Ofício Divino do Tríduo Pascal, e o segundo aparece na Epístola para o 2.º Domingo depois da Páscoa [iii]. 

Outra “eructação espiritual” ocorre no sinônimo, ou complemento, do exemplum da Coleta, os curiosos documenta, que traduzimos como “lições”. Cristo é nosso Mestre precisamente por sua humildade: “Recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). E temos suas lições de humildade graças aos documentos do Novo Testamento. 

A imitação é fundamental para a vida cristã. Imitamos Jesus Cristo, nosso exemplo, e imitamos aqueles que o imitaram, ou seja, os santos (cf. 1Cor 4, 6; 11, 1; Fl 3, 17; 1Ts 1, 6; 2, 14). Escreve São Basílio, o Grande: 

A imitação de Cristo é necessária para a perfeição da vida, não apenas em seu exemplo vivo de humildade, paciência e liberdade da ira, mas também em sua própria morte. Como [São] Paulo, o imitador de Cristo, diz: “Tornando-me semelhante a ele na morte, com a esperança de conseguir a ressurreição dentre os mortos” (Fl 3, 10s) (Sobre o Espírito Santo 15, 35).

O tema da imitação, portanto, põe em destaque a nossa participação no drama da Paixão: também nós devemos tomar nossa cruz e segui-lo a fim de completar o que falta aos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24). É especialmente oportuno recordar esse aspecto da fé neste tempo do ano litúrgico e nesta celebração do Domingo de Ramos. Em regra, o sacerdote faz esta oração depois de participar com os fiéis da bênção dos ramos e da procissão que imita a entrada humilde de Nosso Senhor em Jerusalém, humilde porque Ele entrou montado num jumento, e não em um cavalo como um triunfante rei guerreiro. 

A palavra fecisti, que traduzimos como “fizestes”, soa um pouco forte; poderia dar a impressão de que o Pai forçou o Filho a sofrer tais humilhações. Mas, entendido na clave teológica certa, o texto é sólido. O Prefácio da Cruz usado nesta Missa inclui o seguinte: 

Dómine, sancte Pater, omnípotens ætérne Deus: qui salútem humáni géneris in ligno Crucis constituísti: ut, unde mors oriebátur, inde vita resúrgeret: et, qui in ligno vincébat, in ligno quoque vincerétur… — Senhor, Pai santo, Deus onipotente e eterno, que no madeiro da Cruz pusestes a salvação do gênero humano, a fim de que, donde nascera a morte, daí ressurgisse a vida, e aquele que no madeiro vencera, no madeiro fosse vencido… [iv]. 

“Fazer” e “estabelecer” o Filho, porém, são verbos que não se realizam sem o pleno consentimento e a cooperação do Filho. Como cantamos no Tempo da Paixão, durante o hino de Laudes, se volente, natus ad hoc, Passioni deditus, segundo a redação original do hino Pange lingua, de Venâncio Fortunato. Na tradução litúrgica brasileira: “Só para ela nascido, livre se entrega à Paixão” [v]. 

Finalmente, a Coleta é elegantemente construída. Juntas, a dupla descrição da atividade do Salvador e de nossa dupla petição ao Pai formam um quiasmo no padrão ABBA: 

O Salvador tomando nossa carne [mortal] (A)

O Salvador suportando a Cruz (B)

Nosso aprendizado com sua perseverança (B)

Nossa comunhão com sua carne ressuscitada [sua ressurreição] (A)

Podemos imaginar esse quiasmo como um vale de descida e subida. Cristo desce primeiro por sua Encarnação; depois, vai ainda para mais baixo com sua morte humilhante. Nós o encontramos no fundo do vale quando o imitamos e, portanto, tomamos parte em sua Paixão (enxugando-lhe o rosto, como Verônica, e carregando-lhe a Cruz, como Simão de Cirene). Assim podemos ascender com Ele em sua ressurreição. Rezemos para que, assim como a arte imita a vida, nossa vida imite esta bela oração. 

Notas

Na liturgia antiga, o 5.º Domingo da Quaresma era o 1.º Domingo da Paixão. Começava-se um tempo diferente dentro do próprio tempo quaresmal. Daí a tradição de se velar as imagens, própria das últimas duas semanas da Quaresma (N.T.). 

Em latim, a oração Coleta do Domingo de Ramos é a mesma tanto no rito antigo quanto no novo. A tradução usada no texto, porém, prima pela literalidade e difere um pouco da tradução litúrgica brasileira (N.T.). 

Hoje, no rito novo, esta leitura da Primeira Carta de São Pedro faz-se no 4.º Domingo da Páscoa, Ano A. 

No rito de Paulo VI, o Prefácio prescrito para o Domingo de Ramos é outro. Este, embora tenha sido mantido, reza-se na festa da Exaltação da Santa Cruz; também aqui, a tradução literal foi preferida à oficial usada no Brasil (N.T.). 

Trata-se do hino “Cantem meus lábios a luta”, que em latim começa com as palavras Pange lingua (não confundir com o outro texto de Santo Tomás de Aquino, composto para Corpus Christi). Este poema do século VI é prescrito pela Igreja para o Tempo da Paixão e foi modificado por uma comissão de jesuítas no século XVII, sob a supervisão do Papa Urbano VIII. Esta versão prevaleceu no Breviarium Romanum (isto é, no Ofício Divino antigo), com a primeira parte sendo cantada nas Matinas e a segunda (a partir de Lustra sex qui iam peregit) nas Laudes. 

A Liturgia das Horas parece ter restabelecido em grande parte o texto latino original, anterior à reforma de Urbano VIII, e as traduções vernáculas se baseiam também nele. O corte atual, porém, foi para a estrofe seguinte: En acétum, fel, arúndo (“O fel lhe dão por bebida”). — Em suma, quem quiser encontrar no Ofício Divino vigente o trecho em questão, deve consultar o hino de Laudes do Ofício das Leituras para a Semana Santa (N.T.).

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