Quando decidiu restringir o
acesso do filho ao computador, Mariana (nome fictício) observou um
comportamento diferente daquele que o adolescente costumava demonstrar. O
garoto, então com 12 anos, se revoltava contra os pais quando era obrigado a
ficar algumas horas sem usar a internet. Xingava, gritava e arremessava
objetos. Parecia outra pessoa, segundo relato da própria mãe. "Ele tinha
um ódio no olhar, ficava totalmente transtornado. Não era mais aquele menino
doce e carinhoso", conta ela.
Mariana decidiu procurar
ajuda. Passou a participar de um grupo de apoio a pais e parentes de jovens que
fazem uso abusivo de tecnologias. Ao frequentar as sessões, coordenadas por
profissionais do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da
Universidade de São Paulo (IPq-HC/USP), percebeu que o que o filho tinha era um
vício e conheceu outras famílias com o mesmo drama.
O fenômeno, já notado por
alguns pais, está sendo quantificado por uma pesquisa pioneira no Brasil.
Levantamento da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) com mais de 2 mil
adolescentes mostra que 25,3% são dependentes moderados ou graves de internet.
"Como a amostra
pesquisada é grande, é um estudo representativo da realidade dos centros
urbanizados brasileiros", ressalta Hermano Tavares, coordenador do
Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do IPq, que conta com um grupo
de tratamento para dependência tecnológica.
O estudo foi feito com jovens
de 15 a 19 anos de escolas públicas e privadas da região metropolitana de
Vitória. Eles responderam a um questionário internacionalmente utilizado para
verificar o vício digital, o Teste de Dependência de Internet (ou Internet
Addiction Test, em sua versão original, em inglês).
Mais do que medir o tempo de
uso das redes, a avaliação tem como objetivo verificar como acesso à internet
impacta na rotina, emoções e relacionamentos dos usuários.
É esse impacto, segundo
especialistas e pais de jovens, o principal indicador de quando o uso da
internet torna-se problemático. No caso do filho de Mariana, hoje com 16 anos,
o vício em jogos online trouxe, além de comportamento agressivo, queda de
rendimento na escola, ansiedade e atitudes antissociais. "É triste abrir a
porta do quarto do filho, saber que ele tem a oportunidade de frequentar tantos
lugares e vê-lo só enfurnado em casa", diz.
Mais problemas
Outro reflexo da dependência
tecnológica é a presença de transtornos mentais associados. Segundo George
Nunes Bueno, pesquisador da Ufes e um dos responsáveis pelo estudo, a proporção
de jovens com sintomas de ansiedade no grupo de dependentes tecnológicos é o
dobro da verificada entre não dependentes (34%, ante 17%).
"O número de dependentes
é maior entre os que dizem usar a internet para se divertir, passar tempo livre
ou que considera a internet uma companhia", explica o especialista.
Razões
A solidão e a baixa
autoestima são algumas das razões para o uso problemático da internet,
principalmente entre os mais jovens. "A autoimagem é muito importante na
adolescência e muitos encontram nas redes sociais a aprovação e a popularidade
que não encontram fora da internet", diz Sheila Niskier, médica do
adolescente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Para o psicólogo Cristiano
Nabuco, coordenador do grupo de dependências tecnológicas do IPq-HC, outra
razão para o uso excessivo de internet entre jovens brasileiros é a enorme
desigualdade sociocultural do País. "Perante a web, todos são iguais e têm
oportunidades de cultura similares", afirma.
Ele afirma ainda que a
violência urbana registrada nas cidades brasileiras faz com que os próprios
pais prefiram que os filhos permaneçam em casa, no computador, a que façam
atividades externas.
Para os especialistas, é
importante que os pais saibam identificar o problema, impor limites e mudar
hábitos dentro de casa. "O adolescente tem o pé no acelerador das emoções,
é impulsivo. O controle tem de ser externo. Muitas vezes o uso da internet está
preenchendo um vazio na família", afirma Sheila.
Depoimento:'Meu filho ficou
irreconhecível. Até espumava'
Até os 14 anos, o Lucas (nome
fictício) era bem tranquilo. Aos 15, começou a apresentar sinais de que não
estava bem. Nós tínhamos mudado de bairro e ele ficava mais tempo em casa,
quase sempre no computador. Nessa época, comecei a notar que ele se tornou mais
agressivo e explosivo. Passava umas dez horas por dia na internet. Quando ele
tinha 16 anos, tiramos o computador de casa para usar em um comércio que tínhamos
aberto.
Ele passou a jogar escondido,
mas, quando não conseguia, demonstrava raiva, até mudava a feição. Em uma
dessas crises, pegou uma faca para tentar agredir o irmão. Tivemos de chamar a
polícia. Em outra, arrancou os fios do computador da parede, quebrou dois
celulares, ficou irreconhecível, até espumava, de tanta raiva. Chegamos no
limite quando ele se trancou no quarto e ficou segurando uma faca contra o
peito, dizendo que ia se matar. Conseguimos entrar e tirar a faca dele.
Fomos ao hospital com ele,
passamos em psiquiatra e começamos a procurar ajuda para dependência em
tecnologia. Foi então que toda a família passou a frequentar o grupo de apoio a
familiares de dependentes em internet do Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas da USP. Todos tiveram de mudar hábitos e aprender a pôr limites.
Avaliando a criação do Lucas,
percebo que sempre fomos permissivos, não colocávamos limites, fazíamos de tudo
para evitar frustrações. Desde que começamos o acompanhamento, há quatro meses,
estamos tentando mudar.
Em primeiro lugar, o pai, que
era caminhoneiro, mudou de emprego para ficar mais presente. Passamos a
equilibrar os deveres do Lucas com privilégios. Agora, ele tem limite de horas
no computador, tem de frequentar cursos. Estamos mais presentes e isso está
fazendo a diferença.
Terapia com pais
A cada 15 dias, um grupo de
pais e parentes de jovens se reúne em um sobrado em Pinheiros, na zona oeste de
São Paulo, para aprender a lidar com o inusitado vício dos filhos. A maioria
está na faixa dos 40 ou 50 anos e tem filhos adolescentes.
Quando tornaram-se pais e
mães, relatam, um dos principais medos era de que os filhos se tornassem
dependentes de drogas ou álcool, ou que fossem vítimas de violência.
Também temiam (e queriam
evitar) ter com os filhos uma relação autoritária como a que vivenciaram com os
pais, sem diálogo e com muitas regras.
Mas o que hoje tem se
manifestado como principal preocupação da paternidade foi algo inesperado: a
apatia que os filhos demonstram com qualquer atividade que não esteja
relacionada ao uso da internet. "Se ele não pode estar no computador, fica
deitado na cama e dorme o dia todo", conta o pai de um jovem de 23 anos.
"Parece que não tem uma motivação na vida, não consegue tomar decisões",
relata outro.
A psicóloga Sylvia Van Enck,
do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da USP, conduz as sessões de terapia.
Em uma delas, acompanhada
pelo Estado, ela convida os presentes a revisitarem sua adolescência, lembrando
que, quando jovens, eles também desafiavam os pais e queriam quebrar regras,
mas que a resposta dos responsáveis era diferente.
"Antigamente os pais se
impunham gerando medo, e não queremos reproduzir isso hoje. Mas também
precisamos perceber o tanto de privilégios que temos concedido antes mesmo que
os filhos cumpram com suas obrigações", diz ela.
A ideia não é trazer culpa
aos pais, mas ensiná-los a balancear diálogo com limites. "Muitas vezes os
pais temem as reações dos filhos e evitam o conflito, mas isso leva a um
distanciamento maior. Definir tarefas e obrigações para eles é uma forma de
integrá-los à família e fazer com que eles se sintam úteis. Nos jogos online ou
nas redes sociais, muitas vezes eles se sentem valorizados e por isso querem
ficar só naquele mundo", destaca Sylvia.
Foi essa a principal mudança
adotada por Mariana no trato com o filho de 16 anos após frequentar o grupo do
IPq. "Mais importante do que superprotegê-lo é analisar as reações dele e
ir negociando. Não precisamos ser autoritários, mas é preciso mostrar, mesmo
que de forma sutil, liderança", diz.
Detox digital
Com o crescente número de
jovens que manifestam uso abusivo de internet, especialistas resolveram se unir
ao governo federal para criar um programa que conscientize pais e filhos sobre
o uso adequado de tecnologias.
Capitaneado pelo Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o programa Reconecte oferecerá
cartilhas e vídeos informativos sobre como a tecnologia pode ser usada de forma
proveitosa, mas sem criar prejuízos em aspectos como saúde mental e segurança.
"A tecnologia traz
inúmeros benefícios, mas pode ser problemática. Queremos promover o
fortalecimento do vínculo familiar como forma de evitar esse uso abusivo. Vemos
que, muitas vezes, o uso problemático está relacionado a uma fragmentação do
diálogo, a uma piora da escuta em casa", diz Angela Vidal Gandra da Silva
Martins, secretária Nacional da Família da pasta.
Entre as ações está o Detox
Digital Brasil, data em que o governo promoverá atividades culturais convidando
as famílias a ficar um dia longe da internet. A ação será realizada no dia 8 de
dezembro.
Segundo Daniel Celestino de
Freitas Pereira, coordenador geral de enfrentamento a vícios e impactos
negativos do uso imoderado de novas tecnologias do ministério, além de ações em
cinco eixos (cultura, responsabilidade, dignidade humana, saúde e segurança), o
programa Reconecte deverá fazer um levantamento sobre o assunto. "Queremos
fazer uma grande pesquisa nacional sobre a saúde mental relacionada ao uso de
tecnologias." Pereira afirma que uma das possibilidades avaliadas é de que
esse estudo seja feito em parceria com o Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas da USP.
O grupo de dependência
tecnológica do instituto, coordenado pelo psicólogo Cristiano Nabuco, já vem
atuando em conjunto com o ministério com consultoria técnica sobre o tema./As informações são do jornal
O Estado de S. Paulo.
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