Para advogados consultados
pela BBC News Brasil, defesas de réus da Lava Jato poderiam usar projeto a
favor de seus clientes e em acusações contra o juiz e o procurador.
"Se aprovadas, será uma
sinalização importante. As pessoas precisam ter fé nas suas instituições
democráticas" disse o então juiz federal Sergio Moro, em uma audiência
pública em outubro de 2016, defendendo as "10 medidas contra a
corrupção" propostas pelo Ministério Público Federal (MPF), então
recém-transformadas em projeto de lei.
Em giro pelo Brasil para promover as mesmas "10
medidas" desde o ano anterior, o procurador-chefe da Lava Jato, Deltan
Dallagnol, fundamentava a proposta dizendo que "as soluções que propomos
são dos maiores especialistas no combate à corrupção". Artistas como
Susana Vieira, Victor Fasano, Malvino Salvador, Juliana Paes e outros
endossaram
Moro e Dallagnol defendem há
pelo menos cinco anos a transformação das "10 medidas" em lei. Hoje,
no entanto, pontos previstos no polêmico projeto endossado pela dupla poderiam
ser usados contra eles próprios, segundo especialistas, em meio ao turbilhão
causado pela divulgação de conversas atribuídas a promotores e o atual ministro
da Justica e Segurança Pública pelo site The Intercept Brasil no domingo.
Em um eventual processo, as
conversas seriam provas obtidas de forma ilegal - segundo Moro, Dallagnol e
nota do próprio MPF, hackers teriam invadido celulares de integrantes da
força-tarefa.
Segundo o The Intercept
Brasil, as conversas estavam em "um lote de arquivos secretos enviados ao
Intercept por uma fonte anônima há algumas semanas". O veículo destaca que
o material chegou antes da notícia de que o celular de Moro foi invadido por
hackers - o agora ministro disse que informações pessoais e outros conteúdos não
foram capturados.
Controvérsia jurídica
Alvo de muita controvérsia, o
projeto de lei das "10 medidas" propõe o uso de provas de origem
ilícita em processos legais - algo atualmente vedado pela Constituição, apesar
de ser alvo de debate no meio jurídico no caso de um eventual uso em favor de
acusados.
Se o projeto defendido nos
últimos anos por Moro e Dallagnol estivesse em vigor, as defesas do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e dos demais réus da Lava Jato poderiam
usá-lo a favor de seus clientes, já que o texto prevê que se exclua "a
ilicitude da prova" quando ela é "necessária para provar a inocência
do réu ou reduzir-lhe a pena".
De acordo com especialistas
como Rubens Glezer, professor de Direito da FGV-SP, os advogados dos réus
poderiam hipoteticamente alegar, se o dispositivo estivesse em vigor, que as
conversas entre o juiz e o procurador - mesmo se obtidas ilegalmente -
serviriam para invalidar as sentenças proferidas por Moro com base em acusações
do MPF de Curitiba.
Outro ponto defendido por Moro
e Dallagnol poderia, segundo advogados consultados pela BBC News Brasil, ser
usado em eventuais processos judiciais contra eles próprios, já que as medidas
preveem que provas ilícitas possam ser usadas legalmente se "obtidas de
boa-fé por quem dê notícia-crime de fato que teve conhecimento no exercício de
profissão, atividade, mandato, função, cargo ou emprego públicos ou
privados".
Nesse caso, as provas obtidas
pelo site, se confirmadas, poderiam teoricamente embasar acusações contra Moro
e Dallagnol por suposta violação do Artigo 254 do Código de Processo Penal, que
proíbe que juízes aconselhem "qualquer das partes", explica o
advogado criminal Cristiano Avila Maronna, doutor em Direito Penal e
conselheiro seccional da OAB-SP.
'Sorte deles'
Proposto em março de 2016
após um abaixo-assinado organizado pelo MPF, o projeto de lei sobre as medidas
(PL 4850/2016) encontra-se parado no Congresso após uma série de debates e
propostas de alterações.
Parte das medidas foi
incorporada ao chamado Pacote Anticrime apresentado pelo ministro Sergio Moro
após sua nomeação, em janeiro. Nesta terça-feira, o ministro do Supremo
Tribunal Federal Gilmar Mendes indicou que vazamentos ilegais "não
necessariamente" anulam provas - mesmo sem a aprovação das 10 medidas.
"Não necessariamente
[anula]. Por que se amanhã [uma pessoa] tiver sido alvo de uma condenação por
exemplo por assassinato, e aí se descobrir por uma prova ilegal que ela não é
autor do crime, se diz que em geral essa prova é válida", disse o ministro,
segundo o jornal Folha de S.Paulo.
Rubens Glezer, professor da
FGV-SP e coordenador do centro Supremo em Pauta, explica que "o projeto
das 10 medidas contra a corrupção tenta ampliar o uso de provas ilícitas em
diferentes situações - a maior parte delas em favor da defesa". "Se
tivesse sido aprovada, (a lei das 10 medidas) permitiria, sim, que os
vazamentos fossem usados legalmente", diz.
"Hoje, existe um debate,
mesmo antes de aprovação das medidas, que entende que é possível em casos de
extrema gravidade ou algo do gênero o uso de provas ilícitas em defesa dos
réus", explica o professor. Com a proposta de lei sobre as 10 medidas, os
autores pretendem trazer este debate do plano teórico e regular o uso efetivo
deste tipo de provas.
O advogado criminal Cristiano
Maronna concorda que as regras propostas por Moro e Dellagnol poderiam se
voltar contra os dois após a divulgação das conversas. "Para sorte deles, as 10
medidas do MPF contra a corrupção não foram aprovadas", diz.
À reportagem, ele afirma que
o trecho do projeto de lei que liberaria o uso de provas obtidas ilegalmente
para "provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena" beneficiaria
os acusados em "caso de qualquer irregularidade que pudesse comprometer a
lisura do processo, como parece ser o caso deste material".
Maronna ressalta que a
possível figura do hacker ou do responsável direto pelas invasões nos celulares
dos procuradores e do juiz não é protegida nem pela lei atual nem pelo projeto
das 10 medidas.
"O hacker praticou
crime", avalia.
Sinais invertidos
Para o professor Glezer, a
crise detonada pela publicação dos diálogos entre membros da Lava Jato ilustra
a ausência de um "pacto da sociedade pelo cumprimento de regras - elas são
respeitadas ou não conforme a ocasião". Ele explica: "A maior ironia
nesse caso é que as posturas dos apoiadores de Lula e dos apoiadores de Moro
trocaram de sinal".
"Uma parcela importante
dos defensores de Lula argumentava que apesar do mensalão e do envolvimento com
empreiteiras serem ilegais, o governo trouxe avanços sociais e que os fins
justificariam os meios - uma lógica que sempre criticada pelos
opositores", avalia.
Hoje, a situação teria se
invertido. "Agora são os defensores dos promotores e do juiz que se valem
da ideia de que os fins justificam os meios para defender os diálogos que foram
divulgados. Isso mostra que a própria população não vê virtude na obediência às
regras e procedimentos, independente do lado."
O ponto de vista é
compartilhado por Roberto Simon, chefe do grupo de trabalho anti-corrupção do
think tank Americas Society/Council of the Americas, em Nova York. "O vazamento de
informações e o uso do jornalismo investigativo para mobilizar a opinião
pública foram elementos essenciais da Lava Jato desde o fim de 2014", diz.
"Agora, é muito difícil
convencer o público a ignorar informações tão reveladoras com apenas o
argumento de que elas foram obtidas de modo ilegal ou ilegítimo", afirmou,
lembrando que nem Moro, nem Dallagnol negaram a veracidade da troca de
mensagens./ noticias.uol.
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