Além do elo com duas offshores já conhecidas pelos investigadores da Lava Jato, Inês Maria Neves Faria, mãe do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), é beneficiária no exterior de uma terceira empresa cujos ativos chegam perto de 4 milhões de reais. A existência da Domomedia Investment Holding, baseada em Luxemburgo, paraíso fiscal europeu, está documentada por um conjunto inédito de dados obtidos pelo jornal francês Le Monde e pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP).
Ao contrário das outras duas offshores, sediadas em Liechtenstein e no Panamá, a empresa em Luxemburgo nunca apareceu nas apurações do Ministério Público Federal sobre Aécio, que vem sendo investigado por corrupção em um inquérito e responde a uma ação penal, também por corrupção. A Domomedia tampouco havia sido reconhecida por ele e seus familiares em um primeiro contato com a piauí, realizado na última sexta-feira, dia 5 de fevereiro, ocasião em que não responderam perguntas sobre a empresa e emitiram uma nota genérica. Mas, num vaivém de notas e manifestações até o dia 9, as versões da família mudaram.
A mãe de Aécio Neves é um dos 64 mil beneficiários de 140 mil empresas instaladas em Luxemburgo, reveladas pelo Le Monde e pelo OCCRP. Ao ter acesso a esse material, a piauí e o OCCRP descobriram que, entre os beneficiários, há pelo menos 358 brasileiros ou residentes no Brasil cujos ativos totalizam 112,6 bilhões de euros – ou 722,6 bilhões de reais, em valores corrigidos até fevereiro de 2020.
Inês Maria Neves Faria, que completará 82 anos no próximo dia 27 de fevereiro, é sócia dos filhos Aécio e Andrea Neves em empresas no Brasil. Ela foi citada lateralmente em um inquérito e uma ação penal sobre Aécio em curso no Supremo Tribunal Federal. No inquérito, sobre a estatal de energia Furnas, a mãe aparece como beneficiária final de uma offshore em Liechtenstein e de uma conta bancária ligada à offshore do Panamá. A suspeita do MPF é que as duas empresas tenham sido usadas para transferir dinheiro originário do esquema de propinas de Furnas, e, segundo documento anexado aos autos do inquérito, “é forte a possibilidade” de que, por meio delas, Inês Faria tenha colaborado com o pagamento de vantagem indevida ao filho.
Já a ação penal, que decorre da delação dos executivos da JBS, menciona um imóvel em nome de Inês Faria no Rio de Janeiro e a sociedade dela com Aécio e Andrea em uma rádio em Belo Horizonte como parte de um esquema ilegal de propinas. O deputado nega taxativamente o envolvimento de sua mãe nas acusações às quais responde na Justiça.
Fora do radar das investigações em curso, a Domomedia é mais recente que os fatos investigados no inquérito e na ação penal. A empresa foi criada em 2017 por um escritório especializado nesse tipo de negócio, como acontece com a maioria das companhias em paraísos fiscais. Seu capital inicial era de 3,2 mil euros, ou 21 mil reais, segundo os balanços financeiros disponíveis no sistema do governo de Luxemburgo. Inês Faria só passou a ser sócia da Domomedia a partir de 2018. No dia 31 de dezembro daquele ano, os ativos da empresa somavam 56 mil euros, o equivalente a 363 mil reais.
No último dia 4 de fevereiro, a piauí perguntou à assessoria de Aécio por que Inês Faria abriu uma empresa em Luxemburgo, qual a fonte dos recursos da empresa e se a operação fora declarada à Receita Federal e ao Banco Central, como manda a lei. No dia seguinte, a assessoria respondeu sem fazer menção à Domomedia. A nota dizia: “A senhora Inês Maria Neves Faria foi casada por cerca de 30 anos com o banqueiro e empresário Gilberto Faria, tendo toda sua vida econômico-financeira e patrimonial vinculada a ele, e não aos seus filhos, como amplamente documentado.”
Na segunda-feira, dia 8, porém, o advogado Fabio Tofic Simantob, que representa Inês Faria, procurou a piauí com nova versão. Desta vez, reconheceu que sua cliente é beneficiária da Domomedia e encaminhou documento segundo o qual ela passou a ser sócia da empresa em 14 de dezembro de 2018. Era a única sócia. O objetivo de sua cliente, afirmou o advogado, era transferir para a empresa um imóvel na França deixado por Gilberto Faria, morto em 2008.
Simantob, que é criminalista e não tributarista, acrescentou na ocasião que a iniciativa tinha sido orientada por “advogados, visando preparar o planejamento tributário e de sua sucessão” e sublinhou que “a Domomedia nunca possuiu conta bancária ou vida ativa”. Indagado pela piauí se a empresa havia sido informada à Receita Federal, ele respondeu apenas que “o imóvel na França se encontra devidamente declarado às autoridades brasileiras”. Sobre a Domomedia, nada.
No dia 9 de fevereiro, às 8 horas, a piauí perguntou se Inês Faria havia efetivamente transferido o imóvel na França para a empresa de Luxemburgo, como seria sua intenção. “Ainda não”, respondeu Simantob por escrito. “O procedimento foi suspenso em função da pandemia, o que impossibilitou a sra. Inês Maria de viajar e será retomado assim que ela possa se deslocar até a Europa.” A pandemia começou na China na virada de 2019 para 2020 e chegou ao Brasil entre fevereiro e março de 2020. A mãe do deputado tornou-se beneficiária da empresa em dezembro de 2018, um ano antes da eclosão da pandemia.
Na mesma manhã de 9 de fevereiro, a piauí verificou que um novo balanço da Domomedia, referente ao ano de 2019, fora incluído no sistema de dados de Luxemburgo seis dias antes. Segundo o novo documento, a empresa somava, ao final de 2019, um patrimônio de 617 mil euros, quase 4 milhões de reais. Diante disso, a revista voltou a questionar a família Neves sobre a origem dos recursos que, de um ano para outro, pularam de 56 mil euros para 617 mil euros. A piauí também voltou a perguntar se a Domomedia havia sido declarada às autoridades nacionais e, pela segunda vez, se o imóvel na França fora transferido para a empresa em Luxemburgo.
Ao meio-dia, Simantob enviou nova nota, com nova versão. Ele reafirmou que a transferência do imóvel fora interrompida “em função da pandemia”, que impediu a cliente de viajar para assiná-la presencialmente. Acrescentou que os “procedimentos para transferência da titularidade do imóvel” chegaram a ser iniciados, o que explica o aumento dos valores de 56 mil euros para 617 mil euros. Na nota, o advogado disse que “o valor contábil do imóvel foi sendo lançado em etapas a cada exercício, por decisão e critério dos responsáveis pela gestão da empresa”. “O imóvel na França (ao qual correspondem os valores contábeis mencionados) se encontra declarado ao Banco Central e à Receita Federal. Reiteramos, portanto, a informação de que não houve qualquer transação financeira feita pela empresa Domomedia, sendo os valores mencionados apenas contábeis e não financeiros. O que atesta mais uma vez a lisura de todos os atos praticados pela sra Inês Maria”, afirmou Simantob.
Na nota, o advogado usa a expressão “valores contábeis”, e não “financeiros”, para dizer que eram informações para constar no registro da empresa, mas não indicavam movimentação real. No entanto, mais uma vez não respondeu se a Domomedia foi ou não declarada às autoridades brasileiras, limitando-se a dizer que o imóvel na França, apenas o imóvel, é do conhecimento da Receita Federal brasileira. Em todos os contatos, a reportagem perguntou se a empresa foi declarada às autoridades brasileiras, como manda a lei. A família de Aécio não respondeu formalmente nem que sim nem que não. A reportagem segue aguardando demonstrativos da declaração, se eles existirem.
Um advogado tributarista consultado pela reportagem, que pediu para não ser identificado porque não conhece os pormenores do caso, disse que a Domomedia deve ser declarada à Receita Federal, quer seu balanço mencione “valor contábil”, quer mencione “valor financeiro”, mesmo que o imóvel de sua propriedade na França tenha sido declarado . Além disso, quando seus ativos passaram a somar mais que 100 mil dólares (cerca de 83 mil euros), o que aconteceu no decorrer do ano de 2019, a Domomedia também deveria prestar informações ao Banco Central, sob pena de ser enquadrada, no limite, em crimes como evasão de divisas ou sonegação.
Ter empresa num paraíso fiscal não é ilegal, desde que a operação seja declarada no Imposto de Renda. Segundo o artigo 11 da instrução normativa da Receita nº 1.924, de 19 de fevereiro de 2020, todo o patrimônio deve ser declarado, inclusive valores contábeis, salvo aqueles de valores ínfimos. Residentes no Brasil devem informar anualmente à Receita Federal os bens e direitos que detenham no exterior, exceto bens móveis abaixo de 5 mil reais, saldos de contas correntes e aplicações financeiras abaixo de 140 reais e ações e cotas de uma empresa de até 1 mil reais.
Segundo o advogado tributarista e professor da FGV Edison Fernandes, o ativo de 56 mil euros informado pela Domomedia em 2018 (quando Inês Faria ingressa na companhia) é um crédito que a empresa tinha a receber no prazo de até um ano. “Independentemente do tipo de ativo, a empresa deve ser declarada à Receita Federal no Brasil”, reafirma ele. Fernandes também concorda que “valores contábeis” não são motivos para não informar à Receita. Diz ele: “Não há como dizer que os valores são ‘meramente contábeis’. Mesmo se fossem, a empresa tinha de ser declarada.”
Por conta de citações às offshores ligadas a Inês Faria em Liechtenstein e no Panamá, os investigadores da Lava Jato tentaram esquadrinhar a vida financeira dos Neves no exterior, mas nunca chegaram à Domomedia de Luxemburgo. O ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, que chefiou o Ministério Público Federal de 2003 a 2005, afirmou que a empresa em Luxemburgo deveria ser incluída no escopo das investigações em curso sobre Aécio. “São situações semelhantes, que têm total conexão com os outros objetos de denúncia do Rodrigo [Janot]”, afirmou Fonteles. “Isso está dentro de um grande quadro fático e a medida processual adequada é o Ministério Público aditar a denúncia que já foi feita”, disse ele.
A Procuradoria-Geral da República, hoje sob o comando de Augusto Aras, não fala sobre o assunto. Questionada pela piauí, afirmou que, “pela natureza das informações solicitadas, ela integra investigação sigilosa, não sendo possível fornecer os esclarecimentos”. A Receita Federal foi na mesma linha. Disse que “não comenta casos específicos em função do sigilo fiscal, previsto no artigo 198 do Código Tributário Nacional”.
Embora a assessoria de Aécio tenha dito que “a vida econômico-financeira e patrimonial” de Inês Faria não seja vinculada a seus filhos, a parceria dela com Aécio e Andrea no mundo dos negócios é conhecida. Aécio, a irmã e a mãe figuram como sócios de uma empresa de compra, venda e aluguel de imóveis próprios, a IM Participações, cujo capital social é de 251 mil reais. Inês Faria e Andrea possuem também a Harmogim, consultoria em gestão empresarial, com capital de 2,5 milhões de reais. Há ainda a rádio Arco-Íris, afiliada da Jovem Pan em Belo Horizonte. A despeito do veto constitucional à detenção de concessões públicas de rádio e tevê por parlamentares, Aécio possuía participação na emissora desde 2010, que ele declarava no valor de 700 mil reais como uma dívida com sua mãe e sócia, assim como Andrea. Em 2016, segundo revelou a Lava Jato, ele vendeu suas cotas para Andrea por 6,6 milhões de reais, e Inês Faria perdoou a dívida – a transação atraiu a atenção dos investigadores, que pediram a quebra de sigilo dos envolvidos. Em sua colaboração premiada com o Ministério Público, Joesley Batista, dono da JBS, disse que a rádio foi usada para o pagamento de uma mesada ilícita ao político tucano de 50 mil reais de 2015 a 2017. Até hoje a Arco-Íris está registrada em nome de Andrea e Inês Faria, com capital social de 200 mil reais.
Inês Maria Neves Faria era filha de Risoleta e Tancredo Neves, presidente eleito que morreu antes de assumir o cargo, em 1985. O seu primeiro marido, Aécio Cunha, pai de seus três filhos, foi deputado estadual e federal, membro de uma tradicional família do Norte do estado. O segundo, o banqueiro Gilberto Faria, também assumiu uma cadeira na Câmara. Ambos exerceram seus mandatos durante a ditadura militar pela Arena, o partido de sustentação do regime. O casamento com Faria, em 1984, estreitou os laços com o Rio de Janeiro. A matriarca e os filhos, ao longo dos anos, adquiriram imóveis em bairros da Zona Sul carioca como Ipanema e São Conrado. Mas nunca tiraram um dos pés de Minas. Ao longo dos dois mandatos de Aécio como governador, Andrea foi o braço direito do irmão, enquanto a mãe comparecia a solenidades filantrópicas e artísticas, sempre com discrição./zerohoranews
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