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sexta-feira, 24 de julho de 2020

IVERMECTINA: o que a ciência diz sobre a 'nova cloroquina'


Ivermectina: o que a ciência diz sobre a 'nova cloroquina ...

O centro de eventos de Itajaí ficou lotado em 7 de julho. Ao longo do dia todo, moradores da cidade de Santa Catarina fizeram fila para levar para casa doses de ivermectina.

A Prefeitura comprou milhões de comprimidos do remédio, que é usado contra parasitas, para distribuir à população como prevenção para a COVID-19, a doença causada pelo novo coronavírus. Várias cidades do país já fizeram igual e outras disseram que pretendem fazer o mesmo.

A procura pelo medicamento também aumentou entre a população em geral. As buscas no Google dispararam. Em algumas farmácias, ele sumiu das prateleiras. E as fabricantes reforçaram a produção para dar conta da demanda.

Esse interesse parece ter sido resultado de uma série de fatores. Um estudo preliminar feito em laboratório teve bons resultados. O acesso a outros remédios alardeados como uma suposta cura para a COVID-19 passou a ser controlado.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez menções à ivermectina, e muitas mensagens circularam no WhatsApp recomendando seu uso "para prevenir o contágio".

Além disso, alguns médicos vêm recomendando, nos consultórios e na internet, que as pessoas a tomem para evitar ou tratar a COVID-19.

Mas tudo isso parece ignorar um fato simples, mas importante: não há até agora comprovação científica de que a ivermectina - ou qualquer outro medicamento - previna ou trate a COVID-19.

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"A ivermectina é hoje o que a cloroquina era em março. As pessoas se convenceram de que ela pode ter algum efeito (contra a COVID-19) e foram atrás de forma descontrolada", diz a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

'As pessoas estão desesperadas'

A ivermectina é comercializada desde o início dos anos 1980 para combater verminoses e parasitas, como piolhos, pulgas e carrapatos, em animais e seres humanos.

O medicamento atua no sistema nervoso central dos vermes e parasitas, provocando paralisia, e costuma ser usado em dose única.

Stucchi conta que há mais ou menos seis semanas começou a receber mensagens de conhecidos e pacientes em busca de informações sobre a medicação.

"Elas perguntam se devem tomar porque souberam que todo mundo está tomando. Nunca tinha ouvido falar em pessoas pedindo ivermectina em 40 anos de profissão", diz Stucchi.

A infectologista afirma que a grande procura ocorre, em parte, porque é um remédio barato e que costuma causar poucos efeitos colaterais. Mas também atribui isso a colegas de profissão que têm indicado seu uso aos pacientes.

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Stucchi cita o caso de uma amiga que foi à dermatologista para renovar receitas de cremes e saiu da consulta com uma receita para ivermectina.

A dermatologista disse que ficava a critério da paciente usar ou não, mas que tinha receitado porque se sentia na obrigação de avisar que acreditava que o medicamento previne a COVID-19.

"Não sei de onde tiraram isso, porque essa informação não existe. Acho que é porque as pessoas estão desesperadas por uma cura e aconteceu um movimento muito bem planejado de divulgar a ivermectina como se ela fosse esse milagre", diz Stucchi.

Estudo preliminar levou à procura por medicamento
Os dados de buscas no Google mostram que a procura pela ivermectina no Brasil deu um salto pela primeira vez no início de abril.

A esta altura, a cloroquina e o antiparasitário nitazoxanida, vendido no Brasil sob a marca Annita, eram os mais procurados nas farmácias contra a COVID-19, mesmo sem eficácia comprovada.

A cloroquina era há tempos propagandeada por Bolsonaro como um remédio eficaz contra o coronavírus, e a nitazoxanida seria testada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações para o mesmo fim.

O aumento do interesse por eles fez com que ambos passassem a ser controlados, ou seja, comprados só com receita, o que restringiu o acesso.

Ao mesmo tempo, um estudo indicou que a ivermectina poderia matar o coronavírus. A pesquisa da Universidade Monash, na Austrália, concluiu em testes em laboratório que o antiparasitário pode neutralizar as propriedades infecciosas do vírus em 48 horas.

Mas trata-se apenas de uma análise preliminar, na qual a substância foi testada em uma cultura de células, e ainda há outros passos fundamentais até que seja possível verificar se esse efeito também ocorre em pessoas.

Um bom resultado nesta etapa está longe de garantir a eficácia contra o vírus. Além disso, a dose testada no estudo, se usada como medicamento, poderia gerar sérios danos à saúde.

A revista Science destacou ser fundamental "uma investigação mais aprofundada sobre possíveis benefícios (da ivermectina) em humanos" no combate à COVID-19.

"Não há nenhuma evidência científica de que funciona, zero, nada", reforça Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e diretor médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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"O que teve foi esse teste in vitro que mostrou que a ivermectina pode ter uma atividade antiviral, mas a dose necessária para isso também mata as células do organismo. Então, precisaríamos de uma hiperdose, que seria tóxica para nós, para ela funcionar."

Ivermectina é o mais buscado no Google no Brasil

A procura por ivermectina no Google caiu ao longo de abril e teve um novo pico de buscas em maio, mas nada comparado ao que vem registrando desde o início do mês passado.

As buscas pelo medicamento cresceram 125% do início de junho até 20 de julho em comparação com os 50 dias anteriores, diz o Google.

Nesta mesma época, em um vídeo publicado em 8 de junho, o jornalista Alexandre Garcia afirmou estar tomando a iverectina "preventivamente". "Não vou fazer propaganda nenhuma, não estou recomendando, só vou contar para vocês, que a gente é amigo, né?", disse Garcia.

Em 11 de junho, Bolsonaro também se referiu à ivermectina durante uma transmissão pela internet. "Acho que o resultado é até melhor que a cloroquina, porque mata os vermes todos", afirmou o presidente.

O infectologista Alberto Chebabo acredita que a ivermectina ganhou popularidade conforme cresceram as evidências de que a cloroquina não é capaz de combater o coronavírus.

"Ela é uma droga pouco tóxica, fácil de tomar e de encontrar, aí virou a bola da vez. Tem um monte de gente usando e recomendando porque todo mundo quer uma bala de prata contra a COVID-19", diz Chebabo.

Os dados do Google apontam na mesma direção. A empresa diz que a cloroquina vem perdendo espaço para a ivermectina nos últimos meses. Entre maio e julho, a ivermectina foi três vezes mais buscada do que a cloroquina e é hoje o medicamento em teste contra a COVID-19 mais buscado no Brasil.

De acordo com a empresa, o país é o terceiro país do mundo com mais interesse pela droga, atrás apenas da Bolívia e do Peru, onde a ivermectina tem sido usada no tratamento da COVID-19.

Milhões de visualizações no YouTube

Também se multiplicaram na internet defesas do suposto benefício do antiparasitário contra a COVID-19.

Nas redes sociais e em aplicativos de mensagens, circulam inúmeros depoimentos de pessoas que afirmam ter tomado o medicamento e se recuperado da doença. Citam até mesmo protocolos supostamente elaborados por médicos contra a COVID-19 que incluem a medicação.

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No YouTube, há vídeos sobre o assunto que passam de 1 milhão de visualizações. Muitos deles foram publicados no início de junho, quando disparou o interesse pela droga no Brasil.

Os vídeos da médica Lucy Kerr, que é especializada em ultrassonografia e uma defensora da ivermectina, estão entre os mais acessados e compartilhados. Neles, ela ensina "protocolos de tratamento" com a medicação contra a COVID-19.

Kerr diz que isso é importante para divulgar a eficácia da ivermectina que não é abordada pela "grande mídia". A médica afirma que há "um monte de estudos" que atestam que a droga funciona contra o coronavírus.

"Na República Dominicana, 1,3 mil pessoas foram tratadas com o medicamento, que garantiu 99% de cura. Estão saindo estudos observacionais que comprovam 100% de cura com a ivermectina em cinco dias com pacientes internados, mais graves", diz ela.

Mas os estudos observacionais são considerados só uma das etapas do processo de uma pesquisa.

"Eles têm uma relevância baixa, porque não são, por exemplo, randomizados (quando participantes são definidos de forma aleatória). Podem ter muitos vieses. Não são adequados (para atestar a eficácia de um medicamento)", diz o infectologista Sergio Cimerman, diretor científico da SBI.

A Sociedade Brasileira de Infectologia emitiu, no fim de junho, um alerta contra o compartilhamento na internet de supostos tratamentos para a COVID-19.

A entidade e o Conselho Federal de Medicina dizem que médicos não devem compartilhar e incentivar o uso de medicações que não têm comprovação científica, ainda que possam receitar individualmente esses remédios, ressaltando que não há comprovação.

Kerr defende a ivermectina como prevenção e tratamento dos primeiros sintomas da COVID-19 e afirma não estar cometendo irregularidades.

"Temos muitas comprovações de que funciona. Há relatos extraordinários. Não daria tempo para termos grandes estudos neste momento", diz a médica.

O que dizem a Anvisa e o Ministério da Saúde?

Diante do aumento da procura pela ivermectina, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou em 9 de julho uma nota em que alertou contra os efeitos colaterais do medicamento e disse que não há provas de sua eficácia.

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"Também não existem dados que indiquem qual seria a dose, posologia ou duração de uso adequada para impedir a contaminação ou reduzir a chance de gravidade da doença. Os resultados encontrados in vitro não podem ser tomados como verdadeiros in vivo", disse a agência.

A Anvisa informou ainda que havia então 26 estudos clínicos da droga contra o coronavírus, entre eles apenas um feito no Brasil, pela Universidade Federal de São Carlos, que só deve ser concluído em meados do ano que vem.

O documento também dizia que a Anvisa não recomendava seu uso para tratar a doença ou como prevenção. Mas a agência suprimiu esse trecho, bem como um alerta contra os perigos da automedicação, em uma segunda versão da nota publicada no dia seguinte.

O novo comunicado manteve a menção de que um remédio deve ser usado conforme indica a bula, mas acrescentou que não há estudos conclusivos de que a ivermectina não funciona contra o coronavírus.

No dia da publicação da primeira nota, Bolsonaro voltou a falar sobre a ivermectina ao vivo na internet. O presidente disse que as pessoas que o criticavam por se tratar com cloroquina deveriam "ao menos apresentar uma alternativa".

"Ora, se não dá certo a hidroxicloroquina, você tem que tomar a ivermectina ou o Annita, que é outro que tá muito comentado por aí, que são eficazes no tratamento do coronavírus", afirmou.

A Anvisa diz que a mudança da nota não teve relação com a opinião de Bolsonaro e que simplificou o texto para não gerar "conclusões equivocadas". Quando houver estudos científicos conclusivos, "irá debater se inclui ou não a indicação do medicamento contra a COVID-19".

A BBC News Brasil apurou que de fato não teria ocorrido uma interferência do Planalto neste episódio.

A posição de Bolsonaro já era conhecida antes da divulgação da primeira versão. E antes do presidente fazer a transmissão, a diretoria da Anvisa já tinha concluído que a nota precisava ser revista, porque a posição da agência teria sido mal interpretada. Não caberia à agência recomendar ou não o uso de um medicamento, uma atribuição dos médicos e do Ministério da Saúde.

À BBC News Brasil, o Ministério da Saúde disse que "não há orientação de uso de Ivermectina para o tratamento da COVID-19".

A pasta afirmou ainda que "até o momento, não há nenhum medicamento, substância, vitamina, alimento específico ou vacina que possa prevenir a infecção pelo coronavírus ou ser utilizado com 100% de eficácia no tratamento".

Ivermectina para metade da população

Mesmo sem respaldo científico, cidades brasileiras têm adotado a ivermectina para tratar pacientes com a COVID-19 ou, supostamente, evitar a infecção pelo vírus.

Em Itajaí, onde há 2,7 mil casos confirmados e 73 mortes pelo novo coronavírus, o medicamento foi distribuído para pessoas com ou sem sintomas da COVID-19.

A Prefeitura diz que, para receber o remédio, a pessoa precisa passar por uma consulta médica e assinar um termo no qual atesta saber que não há provas científicas de que ele funcione contra o coronavírus.

O prefeito de Itajaí, Volnei Moraston (MDB), que é pediatra, acredita que a ivermectina é a melhor alternativa para a COVID-19 no momento.

"Desde meados de março, quando a pandemia chegou à nossa região, estamos com sucessivas medidas restritivas. Mas ainda assim os casos aumentaram. Não podemos ficar apenas nas medidas que não são farmacológicas", justifica.

Assim como Kerr, ele cita estudos observacionais e argumenta que "não é possível esperar até que a ciência comprove a eficácia de uma medicação."

A Prefeitura estima que, entre os cerca de 200 mil habitantes, metade da população já recebeu o medicamento.

O Tribunal de Contas de Santa Catarina cobrou o prefeito sobre o gasto de R$ 4,4 milhões com ivermectina e questionou por que não houve licitação.

Moraston afirma que licitação não foi feita porque há "uma situação de emergência de saúde pública" e afirma que pagou R$ 5,90 por cada caixa com quatro comprimidos, enquanto, segundo o prefeito, nas farmácias locais, o preço varia entre R$ 15 e R$ 30.

Ele diz que não está prejudicando a população de Itajaí ao distribuir o remédio. "Em último caso, fiz um tratamento antiparasitário. Uma vez por ano, é bom que todo cidadão faça", diz.

O prefeito afirma ainda que, enquanto os casos na cidade continuarem aumentando, seguirá distribuindo a ivermectina, mesmo sem provas de que ela funcione./noticia

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