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domingo, 31 de janeiro de 2021

Documentário de Athylla Borborema narra a história da lendária Ferrovia Bahia/Minas

 

[Por Almir Zarfeg] O documentário “De uma ponta à outra”, do jornalista Athylla Borborema, narra em mais de três horas e meia a história da lendária Estrada de Ferro Bahia e Minas (EFBM), que nos tempos áureos ligou a estação inicial de Ponta de Areia (distrito de Caravelas), no km 01, à estação final de Araçuaí, no km 578, no médio Jequitinhonha.  A viagem é muito longa, mas a simpatia do condutor a torna leve e interessante. 

[Veja documentário no final do texto] 

Athylla levou mais de um ano para percorrer as 34 estações – incluídos os dez postos telegráficos – espalhadas por quatro municípios baianos e oito municípios mineiros, entrevistou dezenas de pessoas, muitas das quais testemunhas oculares da inesquecível Bahiminas, como era conhecida a estrada de ferro. 

O jornalista colheu o depoimento de Manoel Bernardino de Almeida, telegrafista da estação de Ponta de Areia. O aposentado conta que, em 1966, recebeu o telegrama dando a notícia da extinção da ferrovia: supressão por 30 e 60 dias, depois a extinção. “Eu levei uma cópia para o chefe da estação”, relata. 

Em planos abertos, o documentário traz depoimentos de Ademar Viana de Paula, Alírio Pinto Silva, Uilton Monteiro dos Passos, João Luiz Benetti, Arolda Figuerêdo, Domingos Cajueiro, Bionor Alves Cajazeiras, Dona Maria da Conceição (Dona Cocó), Kelé Ferreira, Antônio Geraldo de Souza Campos, Ramiro Guedes e outros. São pessoas que, em algum momento de suas vidas, travaram relação com a EFBM. 

“Meu pai trabalhava no vagão e ia comigo no colo trabalhar. Eu só tenho boas lembranças daquela época”, diz Elizete da Silva Tavares, que executou a capela a canção “Ponta de Areia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Sua interpretação imprimiu emoção e saudosismo ao filme. 

Em todas as entrevistas sobressai a nostalgia da boa e velha estrada de ferro e, também, a indignação pelo abrupto fim dela em 1966, durante o governo do general Castelo Branco, decretado pelo ex-ministro dos Transportes Juarez da Távora. 

Além da EFBM, os militares também fecharam outras tantas ferrovias pelo país, como a Estrada de Ferro Bragança, que promovia a integração entre vários municípios paraenses com o argumento de que eram inviáveis economicamente, pois davam prejuízo. Além do mais, não passavam de cabide de empregos e antro de corrupção. 

A Bahiminas – inaugurada em 1882 concretizando o sonho do político mineiro Teófilo Otoni – já havia se tornado há muito tempo objeto das críticas e disputas entre os tecnocratas governistas e a elite liberal, desde a era varguista, passando pelo governo nacional-desenvolvimentista de JK, até chegar à ditadura militar. Esse movimento tinha uma mãozinha dos Estados Unidos (vide Comissão Mista Brasil/Estados Unidos), que, convenientemente, queriam a substituição dos ramais ferroviários pelas rodovias. 

A desativação da EFBM em 1966 – com o telegrama comunicando o encerramento das atividades dela – se insere nas decisões políticas que vêm de cima para serem cumpridas (não questionadas) pelos de baixo. A medida veio em seguida à inauguração, em 1963, da BR-116, conhecida como Rio-Bahia, ligando 12 estados através do litoral brasileiro. O argumento em prol da malha rodoviária ganhava força e, assim, haveria de prevalecer. 

Além da oferta de grandes rodovias federais, como a BR-116 e a BR-101, outros fatores contribuíram para a extinção da EFBM, que funcionou por 85 anos, mas cuja construção se deu por três etapas: a 1ª ligou a estação de Ponta de Areia à estação de Serra dos Aimorés; a 2ª conectou a estação de Serra dos Aimorés à estação de Teófilo Otoni; e a 3ª e última ligou a estação de Teófilo Otoni à de Araçuaí. 

Pesou contra o sistema ferroviário, em primeiro lugar, a sua inviabilidade econômica, uma vez que a arrecadação não era suficiente para bancá-lo, acumulando déficits, com números vermelhos. Mesmo o volume de mercadorias e passageiros havia diminuído nos últimos anos. Depois a modernização (e manutenção) da malha férrea exigia enormes recursos de que o governo federal não dispunha. Se não bastasse tudo isso, havia uma campanha intensa para desacreditar o velho sistema, defasado e corrupto, em favor da novidade… rodoviária. 

Em seguida, todos assistiram à vitória do automóvel sobre o trem. No caso da EFBM, a vitória do ônibus e do caminhão sobre a locomotiva, que trocou os trilhos pela Praça Tiradentes, em Teófilo Otoni, onde se encontra em exposição atualmente. 

A Maria Fumaça – apelidada de Pojichá – saía às 6h da estação de Araçuaí e, às 18h, chegava à estação de Ponta de Areia, onde descarregava passageiros, madeiras, sacas de café, alho e cacau. Havia os vagões para o transporte de animais. Havia atraso no cumprimento dos horários. No retorno, levava as mercadorias – como sal, bebidas e remédios – trazidas dos grandes centros urbanos pelos navios para serem distribuídas no nordeste mineiro. 

A locomotiva a vapor, que desenvolvia velocidade não superior a 30km/h, percorria 578 km na ida e na volta, de estação a estação, repetindo a ladainha mágica – café com pão, manteiga não. A chegada às estações era precedida pelo apito que, acionado, atraía a presença das crianças, vendedores ambulantes e o vaivém de passageiros e ferroviários. Era uma festa. 

O maquinista, sempre a postos, conduzia a enorme Maria Fumaça que serpenteava pelo vasto trilho que ligava Ponta de Areia, no extremo sul da Bahia, a Araçuaí, no médio Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais. O foguista, sempre atento ao abastecimento da fornalha e da caldeira, com lenha e água, respectivamente. 

A importância econômica da EFBM para os quatro municípios baianos e os oito municípios mineiros – beneficiados por ela por mais de oito décadas – foi inegável. No auge dela, Teófilo Otoni chegou à posição de 3ª cidade mais populosa de Minas, ficando atrás apenas da capital, Belo Horizonte, e Juiz de Fora. A cidade de Caravelas, do lado baiano, também se beneficiou bastante desse boom. Aliás, a ferrovia fomentou o desenvolvimento social em todas as cidades e comunidades fixadas em torno dela. Por isso, sua ausência é sentida até hoje, como demonstra o filme “De uma ponta à outra”. 

“Depois que a estrada de ferro acabou, Ponta de Areia e Caravelas sentiram muito e só o que aguentou, até hoje, foi a pesca”, lamenta o pescador Uilton Monteiro dos Passos. 

A repentina desativação da Bahiminas, portanto, pegou todo mundo de surpresa. Quem havia se preparado para viajar, no dia seguinte, ficou a ver navios… A decepção que envolveu a todos foi tocante, constrangedora e levou anos para ser assimilada. Se é que foi assimilada, já que o sentimento de nostalgia, mais que de saudade, permanece. As manifestações artísticas, a música em especial, cuidaram do drama humano. 

Em 1975, nove anos após o encerramento da EFBM, Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram a bela canção “Ponta de Areia”. Em 1980, Milton compôs “Último Trem”, como parte da trilha sonora do balé homônimo protagonizado pelo Grupo Corpo.  A canção sairia em CD nos anos 2000, juntamente com “Maria, Maria”, na voz de Bituca. 

Em 2006, no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, a velha estrada de ferro virou tese de doutorado defendida por José Marcello Salles Giffoni, sob o título “Trilhos Arrancados: História da Estrada de Ferro Bahia e Minas (1878-1966). O estudo inaugurou a pesquisa histórica sobre a EFBM e suas consequências para o nordeste mineiro e extremo sul baiano. 

Em 2020, um dos contos ganhadores do Prêmio Castro Alves de Literatura foi “No meio do caminho tinha uma amendoeira”, da professora e acadêmica Arolda Maria Figuerêdo. O texto narra o retorno do ferroviário Jonga a Ponta de Areia, após ter sido transferido para a Via Férrea Centro-Oeste com o fechamento da Bahiminas. Ele retorna para visitar a comadre Clotilde e o irmão Jonas e, à noite, vivencia uma experiência pra lá de inusitada, o que torna a leitura descontraída e imperdível. O texto premiado segue inédito. 

Outros registros inspirados no trem que parou de beber água: a canção “Estrada de Ferro Bahiminas”, de Eros Januzzi e José Emílio, e os livros “Apitos saudosos – o trem que passou e não voltou”, de Wallace Gomes Moraes, e “Estrada de Ferro Bahia e Minas – Ferrovia do Deus”, de Arysbure Batista Eleutério. 

Por fim, este resgate necessário da Bahiminas que, mais que saudosista, constitui um convite às novas e futuras gerações. Afinal, a linha férrea deixou marcas definitivas nas regiões baianeiras e nas consciências. Tanto que, 55 anos depois, continua inscrita no tempo e espaço agora revisitados pelo valente e decidido Athylla Borborema.

A EFBA, como um fantasma ocioso, seguirá nos matando de saudade e espanto. Porque essa dor é para sempre como os equívocos da política brasileira. 

Assista ao documentário “De uma ponta à outra”:

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