O uso recreativo de maconha
como estratégia de redução de danos para dependentes de crack e cocaína em
reabilitação pode não ser eficaz, é o que mostra uma pesquisa brasileira
publicada na revista Drug and Alcohol Dependence. Dados do artigo indicam que o
consumo da erva piorou o quadro clínico dos pacientes, em vez de amenizar, como
esperado, a ansiedade e a fissura pela droga aspirada ou fumada em pedra
(crack).
O estudo acompanhou um grupo
de dependentes por seis meses após a alta da internação voluntária de um mês no
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo
(HC-USP). Os pesquisadores do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e
Drogas (GREA) e do Laboratório de Neuroimagem dos Transtornos
Neuropsiquiátricos (LIM-21) da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (USP) constataram que a maconha prejudica as chamadas funções executivas
do sistema nervoso central, relacionadas, entre outras atividades, com a
capacidade de controlar impulsos.
“Nosso objetivo é garantir
que políticas públicas para usuários de drogas sejam baseadas em evidências
científicas. Quando as políticas de redução de danos foram implementadas no Brasil,
para usuários de cocaína e crack, não havia comprovação de que seriam
benéficas. Os resultados deste estudo descartam completamente essa estratégia
para dependentes de cocaína”, disse um dos autores do artigo, Paulo Jannuzzi
Cunha, professor do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria da Faculdade de
Medicina da USP e pesquisador do LIM-21.
Foram incluídos na pesquisa
123 voluntários divididos em três grupos: dependentes de cocaína que fizeram
uso recreativo da maconha (63 pessoas), dependentes de cocaína que não
consumiram a erva (24) e grupo controle (36), composto por voluntários
saudáveis e sem histórico de uso de drogas.
Os primeiros resultados
mostraram que um mês após receberem alta, 77% dos dependentes de cocaína que
fumaram maconha mantiveram a abstinência. Já entre aqueles que não fizeram uso
de maconha, 70% não tiveram recaídas.
Mas três meses após a
internação a situação se inverteu e a estratégia de redução de danos mostrou-se
pouco efetiva. Entre os que não fumaram maconha, 44% permaneceram sem recaídas,
enquanto só 35% dos que fizeram uso recreativo da maconha mantiveram-se
abstinentes. Ao fim dos seis meses de acompanhamento, permaneceram sem recaídas
24% e 19% dos voluntários, respectivamente, mostrando que os pacientes que usavam
maconha acabaram recaindo mais no longo prazo.
“Os resultados desbancam a
hipótese de que o uso recreativo de maconha evitaria recaídas e ajudaria na
recuperação de dependentes de cocaína. Um quarto daqueles que não fumaram
maconha conseguiu controlar o impulso de usar cocaína, enquanto só um quinto
não teve recaída entre os que supostamente se beneficiariam da estratégia de
redução de danos. O uso pregresso de maconha não traz melhoras de prognóstico
no longo prazo, o estudo até sugere o contrário”, disse o psiquiatra Hercílio
Pereira de Oliveira Júnior, primeiro autor do artigo.
Prejuízo cognitivo
De acordo com os resultados,
os dois grupos de dependentes de cocaína em reabilitação apresentaram déficits
neurocognitivos importantes em tarefas que incluíam memória operacional,
velocidade de processamento, controle inibitório, flexibilidade mental e tomada
de decisão, quando comparados ao grupo controle.
Porém, aqueles que fizeram
uso recreativo de maconha apresentaram resultados ainda piores em relação às
chamadas funções executivas – relacionadas à capacidade de sustentar a atenção
em determinados contextos, memorizar informações e elaborar ou planejar
comportamentos mais complexos. Também apresentaram lentidão no processamento
mental e maior dificuldade para frear impulsos. Durante todo o projeto foram
realizados testes cognitivos e exames de neuroimagem. Os voluntários também
fizeram exames de urina para verificar o eventual uso de drogas.
“Um dos limitadores do nosso
estudo foi a impossibilidade de analisar o tipo de maconha usada pelos
voluntários. Era a droga que eles consumiam em casa ou no seu contexto social”,
disse Cunha.
Um preparado de maconha é
composto por pelo menos 80 tipos diferentes de canabinóides. Dois deles têm
maior relevância: o THC, associado aos efeitos de relaxamento da droga, à
dependência e a danos neurológicos; e o canabidiol, que poderia modular os
efeitos do THC. “Nosso trabalho não envolveu uma avaliação específica dos
possíveis efeitos do canabidiol, que pode até ter potencial terapêutico, mas se
apresenta em proporção muito menor na maconha fumada e é muito difícil de ser
extraído puro da Cannabis”, disse.
Segundo o professor Cunha,
isolar o canabidiol é uma das linhas de pesquisa para entender melhor se um
comprimido contendo canabidiol pode ter resultados em dependentes de cocaína.
“O problema é que, primeiro, é muito difícil isolar o canabidiol para realmente
fazer uma medicação efetiva, porque geralmente os remédios vem com o THC, então
mesmo remédios com canabidiol vendidos, por exemplo, nos EUA e na Europa, têm
também um teor de THC alto, e o THC piora o quadro do paciente”, reforçou.
Dados do artigo também
indicam que, quanto mais precoce foi o uso de maconha e cocaína na vida dos
dependentes, maiores as chances de recaída durante a reabilitação por cocaína.
“Trabalhos anteriores demonstraram que a precocidade prejudica o
neurodesenvolvimento e a organização de importantes redes neurais no cérebro.
Portanto, a exposição precoce à maconha teria um prognóstico pior não só em
relação à própria maconha, como também a outras substâncias”, disse Oliveira
Júnior.
Redução de danos
O uso de substâncias como a
metadona (narcótico do grupo dos opioides) tem sido considerado uma estratégia
de redução de danos eficaz na reabilitação de dependentes de heroína e outras
drogas injetáveis, atingindo, desde os anos 1990, determinado sucesso em
diferentes países.
Com base nos resultados com
dependentes de heroína, trabalhos anteriores não controlados vinham sustentando
a hipótese de que o uso recreativo da maconha poderia ser também uma estratégia
eficaz na redução da fissura em dependentes de cocaína e crack. “Isso resultou,
inclusive, na implementação de organizações na área de redução de danos e
políticas públicas que indicavam o uso da maconha fumada como estratégia para
redução da ansiedade e fissura pelo uso de cocaína. Nosso estudo contradiz esse
tipo de estratégia”, disse Oliveira Júnior.
Cunha explica que a diferença
de resultados na política de redução de danos entre usuários de heroína e
cocaína ou crack se dá pelas peculiaridades de cada droga. “A abstinência por
heroína traz sintomas corporais, fisiológicos e biológicos muito rapidamente.
Se o usuário fica sem um opioide, começa a suar frio, passar mal, pode ter
convulsões e problemas físicos graves”, disse.
O pesquisador afirma que uma
estratégia farmacológica de redução de danos que ajude na remissão dos sintomas
e que seja um passo intermediário até que o paciente consiga se manter
abstinente é completamente apropriada.
“Já o usuário de cocaína em
abstinência vai ter mais sintomas de humor, como irritabilidade e depressão.
Pode ter uma depressão logo após cessar o uso, mas nada equiparável aos efeitos
físicos observados em usuários de drogas injetáveis. Por isso, nesse caso, são
importantes as estratégias comportamentais que ensinam o paciente a lidar
melhor com as emoções e o ajudam a se manter sem uso de drogas, sendo bem mais
eficientes em longo prazo”, disse.
De acordo com os
pesquisadores, as abordagens mais indicadas são terapia
cognitivo-comportamental, manejo de contingências (reforço de comportamentos
desejáveis) e o tratamento médico-psiquiátrico de eventuais doenças associadas,
como depressão, transtornos de ansiedade e transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade (TDAH)./bahiaextremosul
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