Ainda em vida e durante as
oito décadas após a morte de Lampião, cresceu a imagem de
"bandido-herói", que tirava dos ricos para dar aos pobres. Ideia que
esconde o assassino brutal, que matou inclusive mulheres, crianças e idosos de
forma indiscriminada e que praticava estupros e outras violências contra
mulheres. As boas ações existiram, mas eram exceção.
Virgolino Ferreira da Silva
era vaidoso quanto à reputação e tentava induzir a imagem que tinham dele.
Dizia que o assassinato do pai, um inocente morto pela polícia, teria sido a
motivação de sua entrada no cangaço. Porém, as fontes mais confiáveis mostram
que ele e os irmãos mais velhos já estavam envolvidos em crimes e que a morte
do pai teria sido, inclusive, reação a um dos episódios nos quais os filhos se
envolveram. Mesmo assim, o episódio ajudou a criar o mito de criminoso movido
pela vingança.
Na construção da mitologia a
seu respeito, concedeu entrevista em sua célebre visita a Juazeiro do Norte, em
1926. Questionado pelo jornalista se não o incomodava extorquir dinheiro de
fazendeiros e destruir o patrimônio caso se negassem a colaborar, ele respondeu
que jamais fez tal coisa. Conforme sua versão, tão somente pedia dinheiro a
seus amigos. Virgolino lia matérias de jornais e revistas a seu respeito,
quando os encontrava. Chegava a ficar muito zangado quando considerava algo
injusto.
Em 28 de fevereiro de 1931, o
New York Times chegou a divulgar que Lampião era espécie de Robin Hood - tirava
dos ricos e dava aos pobres. Essa versão cresceu nas décadas após sua morte,
difundida na literatura de cordel, na literatura, no cinema, até movimentos
como o Manguebeat. Nessas narrativas, Lampião ganha ares de herói. Um
herói-bandido, um justiceiro numa terra de injustiças.
Porém, os registros
históricos não fornecem elementos para justificar essa versão. O contexto de
surgimento do cangaço ajuda a entender o fenômeno. No sertão inóspito, as
instituições quase não funcionavam. A Justiça quase nunca alcançava autores de
crimes. A violência muitas vezes se tornava o recurso para vingar ofensas e
fazer o que o Estado não foi capaz. Fosse motivo legítimo ou não, o fato é que,
aos olhos dos sertanejos, tais motivações diferenciavam seus autores de
criminosos comuns. Além disso, a criminalidade aumentava durante secas mais
intensas. Não só ela, como o fanatismo religioso e o messianismo. Eram sintomas
da crise na sociedade sertaneja, conforme classifica Billy Jaynes Chandler,
historiador americano, autor de Lampião, o rei dos cangaceiros. Esse era o
ambiente no qual proliferava o cangaço.
No caso de Lampião, todavia,
não há elementos que fundamentem a vingança como razão para a entrada no
cangaço. O início da vida de violência dele e dos irmãos foi muito mais
decorrência de conflitos com vizinhos e acusações mútuas de invasão de
propriedade e roubo de gado. A divergência logo degenerou em conflito armado.
Em seguida, é fato que o assassinato do pai foi um marco para mergulhá-los em
definitivo na vida de crime. Porém, a vingança nunca foi alcançada. Os que
foram apontados como principais responsáveis pela morte de José Ferreira
sobreviveram em décadas aos irmãos cangaceiros.
Os atos também não justificam
a imagem de Lampião como alguém motivado pelas injustiças sociais. É verdade
que promovia atos de generosidade. Em
Riacho Seco, município de Curaçá, na Bahia, houve um dos episódios no qual
estabelecimentos comerciais foram saqueados, em 17 de setembro de 1929. Em um
deles, as mercadorias foram distribuídas à população. Além disso, dava esmolas
a pobres e retirantes com quem simpatizasse - e fazia isso com grande
ostentação. Episódios como esse fortalecem a tese de "Robin Hood
sertanejo". As boas ações também costumavam ser exageradas. Porém, não era
a regra de sua atuação. Os episódios de violência cometidos por Lampião tinham
como motivação conseguir dinheiro para o bando.
Houve, claro, vários
episódios de vingança, sim. Nos primeiros anos, raramente deixava de escolher
seus alvos entre alguém com que tivesse contas a acertar. Esse padrão começou a
mudar. Em julho de 1925, quando seu primeiro irmão morreu no cangaço - Levino -
passou a direcionar sua ira de forma indiscriminada. Entre agosto e setembro de
1925, seu bando atacou povoados na divisa entre Pernambuco e Alagoas. Pelo
menos sete pessoas morreram. Conforme testemunhas, os alvos tinham sido gente
pobree sem histórico de desavença com os cangaceiros. Entre as vítimas, pelo
menos uma criança e um idoso, ambos desarmados.
Lampião também se irritava
profundamente com construções de estradas. Grande parte de seu sucesso dependia
do isolamento dos sertões, das dificuldades de deslocamento e comunicação. Por
isso, incendiava estações de trem, cortavas fios telegráficos e ameaçava
trabalhadores de obras de rodovias. Em outubro de 1929, atacou canteiro de
estrada que saia de Juazeiro, na Bahia, e matou nove trabalhadores. Em dezembro
do mesmo ano, o bando matou a sangue frio sete policiais que estavam rendidos.
Em outubro de 1935, como vingança pela morte de cangaceiros por uma milícia
civil, o bandoc atacou fazenda e matou um idoso e uma jovem.
Existe a imagem de Lampião
respeitoso com mulheres, mas ela convive com testemunhos de estupros cometidos
pelo bando, alguns dos quais o próprio chefe tomava parte. Um dos relatos
apontam que 25 cangaceiros violentaram a jovem mulher de um delegado, na frente
do marido. Virgolino teria sido o primeiro. Além disso, por volta dos anos
1930, há relatos de que o cangaceiro passou a impor um bizarro código de
conduta. Mulheres que usavam cabelo cortado ou saias curtas eram surradas por
ele. Um dos membros do bando, o terrível José Bahiano, instituiu como castigo a
prática de marcar as mulheres com ferro em brasa.
Também estava longe de ser um
crítico do poder. Como aponta Billy Jaynes Chandler, do ponto de vista das
ideias e preconceitos, era um sertanejo convencional. Não se opunha a
hierarquias e privilégios. Pelo contrário, frustrava-se de não estar entre
eles. Ao ser entrevistado em Juazeiro do Norte, disse que gostaria de ser
comerciante caso abandonasse o cangaço. Em outra ocasião, afirmou que gostaria
de ser fazendeiro. A um jornalista, disse admirar a agricultura, a criação de gado
e o comércio. "Eram as classes conservadoras que ele mais admirava".
(CHANDLER, 1980. P. 239. Editora Paz e Terra).
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