Luiz Inácio Lula da Silva
Com sensibilidade social e
frio cálculo político, Lula agradou diversas classes sociais e de renda.
Tornou-se maior do que o próprio partido e terminou mandato com aprovação
inédita
Há uma máxima vigente na
história das leis do poder segundo a qual toda vida política termina
invariavelmente em fracasso. É como se existisse uma curva descendente
inevitável a ser percorrida pelo político. Em condições democráticas, então,
ser mais popular no fim do que no início de um prolongado período no poder é um
feito raríssimo. Obra e graça de poucos. Luiz Inácio Lula da Silva parece ser
um dos poucos governantes do mundo que pode vangloriar-se de uma conquista
assim. O ex-metalúrgico que deixou a Presidência da República em 1o de janeiro
de 2011 (data em que transferiu a faixa presidencial para sua pupila e
sucessora Dilma Rousseff) com estupendos 87% de aprovação popular é, por este
quesito, o político brasileiro mais bem-sucedido de seu tempo. Mais: quase dois
anos depois de encerrar seus dois mandatos, ainda continua com soberba
influência. Sobre cidadãos e, sobretudo, entre os políticos – a mais poderosa
do País incluída.
O triunfo de Lula durante e
depois de sua passagem pelo Palácio do Planalto se deve a uma soma virtuosa de
fatores: durante seu governo, houve aumento real do salário mínimo, dezenas de
milhões de brasileiros passaram a comprar o que não podiam antes – o essencial
para viver – e parcela significativa da população dispôs de bolsas estatais
para vencer a luta contra a miséria. Tudo isso sem que, na outra ponta da
sociedade, os mais ricos e poderosos tenham deixado de ganhar. Em termos
econômicos, o governo de Lula conseguiu agradar diversas classes sociais e de
renda. Como prometera anos antes, em campanha, Lula promoveu o que acadêmicos
há muito tempo chamaram de conciliação de classes. Sem rupturas.
A economia é quase sempre
determinante nos rumos de um País e de um governante, mas ela não explica
sozinha a popularidade de Lula. Seus dons pessoais jamais podem ser
dispensados. Ele exibiu uma mescla de sensibilidade social e frio cálculo
político. Ou, como Dilma Rousseff certa vez formulou, Lula soube, e sabe,
combinar uma espécie de avaliação racional com inteligência emocional.
Acrescente-se na receita do sucesso a conjugação entre uma personalidade
carismática e a capacidade de organização coletiva. Em outras palavras, a sua
cinematográfica trajetória individual de vida se combinou à façanha sindical e
partidária que marcou o Brasil a partir do fim dos anos 70. Sua ascensão de
operário de fábrica a líder do País incluiu a insurgência como sindicalista e a
formação e consolidação do Partido dos Trabalhadores – durante anos o PT foi
sinônimo de Lula, e Lula sinônimo do PT, até que Lula, uma vez presidente,
tornou-se muito maior do que o próprio partido.
“Ele é o cara”
No início da primavera
londrina, em abril de 2009, Lula estava no intervalo de uma reunião do G-20 –
grupo de países emergentes criado em agosto de 2003 – quando o presidente dos
EUA, Barack Obama, aproximou-se para cumprimentá-lo. “This is the guy”, disse
Obama aos que estavam em torno, apontando o brasileiro. “I love this guy.
The most popular politician on Earth. Because
of his good looks”. Em bom português: “Amo esse cara, o político mais popular
do planeta, porque ele é bonitão”. Lá estava o dirigente do império
capitalista, num linguajar incomum na política (“this is the guy”) para
sublinhar a popularidade do “cara”: o líder de uma nação pobre que, enfim,
emergia em status e poder internacionais; o presidente-operário que dirimia o
Brasil da crise que vergava países poderosos.
Obama demonstrava um quê de
inveja, mas também uma certa condescendência com um presidente que também soube
ser ofensivo somente até certo ponto. Enquanto a convulsão econômica atingia em
cheio os países ricos, Lula conduzia o processo de criação de um novo mercado
no Brasil, chamando a atenção dentro e fora do País. As principais vozes da
imprensa norte-americana e europeia viram nele alguém que não resvalava para as
atitudes tradicionais da esquerda e do populismo. Diferentemente do que Hugo
Chávez fazia Venezuela, diziam eles, Lula seguia a ordem, sem mobilização,
nacionalizações ou expropriações. Uma lua de mel com o Brasil que culminou com
a famosa capa da revista britânica The Economist, em novembro de 2009, com o
título “Brasil takes off”: “O Brasil decola”, afirmava a revista, com o
famigerado Cristo Redentor decolando rumo aos céus como um foguete.
À míngua na política e na
economia
Feito ainda mais notável para
Lula quando se lembra do início claudicante do seu governo. Eleito em 2002 com
61% dos votos, seu primeiro mandato partiu de um início melancólico e, em pelo
menos dois momentos, por pouco não se tornou um desastre. No primeiro, em 2003,
por motivos econômicos. No segundo, dois anos depois, as razões foram
políticas. Herdando uma grave crise econômica, com taxas de juros nominais
acima dos 20%, dívida pública elevadíssima, déficit em conta duas vezes maior
do que a média da América Latina e com o real tendo perdido metade do seu valor
durante a corrida eleitoral, Lula chegou ao Planalto com o País sob
desconfiança intensa. Para reverter o quadro, o governo adotou a ortodoxia,
elevou ainda mais os juros e fez cortes no investimento público. Os preços e o
desemprego subiram, e o crescimento caiu à metade. Enquanto os partidários de
Fernando Henrique Cardoso sublinhavam – e ironizavam – a continuidade entre os
dois, parte dos petistas anunciava o desencanto com o governo e abandonava o
barco.
O pior, no entanto, ainda
estava por vir. Na primavera de 2005, emergia o episódio que seria batizado
como Mensalão, e Lula ingressava num calvário político que macularia a imagem
do PT, abalaria o governo e expurgaria do poder aliados próximos, como José
Dirceu e José Genoino, além do publicitário Duda Mendonça. A chamada grande
imprensa, que já torcia o nariz para seu governo, seria inclemente,
amplificando ainda mais a crise. Mas a reeleição em 2006 escancararia a capacidade
de sobrevivência de Lula, por meio da recuperação do crescimento econômico a
partir da segunda metade do mandato, dos resultados já evidentes do Bolsa
Família, da política de recuperação do salário mínimo e do descolamento entre
aquilo que diziam jornais e revistas e o que se pensava nas ruas e na maior
pluralidade da informação da internet.
Dois personagens dos dramas
medievais são usualmente utilizados para trazer notícias da Corte: o arauto e o
mensageiro. Funcionário graduado do governante, o arauto faz soar as trombetas
e ler as proclamações reais uma audiência selecionada. Faz chegar aos súditos o
que o soberano determinou. O mensageiro, por outro lado, leva notícias do reino
ao rei. Em sociedades modernas, a imprensa cumpre tais funções. Tanto informa o
governante sobre o que se passa no País como diz aos cidadãos o que o
governante pretende fazer. Do primeiro para o segundo mandato, Lula pendeu para
o lado arauto da imprensa. Logo depois das eleições de 2006, perguntaram se ele
se arrependia de algo. Não ter falado mais à imprensa, respondeu o presidente.
Equívoco que não repetiu no segundo mandato.
O vendaval do mensalão
reeditaria o cerco mediático que, décadas antes, atormentara a vida de alguns
presidentes. A candidatura à reeleição quase foi às cordas. Mas o jogo mudou
visivelmente no segundo mandato. O resultado já se sabe. O número de pobres
caiu de 50 milhões para 30 milhões no curto espaço de seis anos. Mais de 13
milhões de famílias foram beneficiadas pelo Bolsa Família, a um custo menor do
que 1% do PIB. Os gastos com educação triplicaram a partir de 2005. O número de
estudantes universitários duplicou. A boa sorte no exterior – pelo menos até
eclodir a crise financeira global de 2008 – ajudou a encorpar o crescimento do
País. A diplomacia e o presidente brasileiros encarnavam uma altivez renascida
nos fóruns internacionais. O PAC, Programa de Aceleração do Crescimento,
injetava ânimo e dinheiro público no espírito do empresariado. Os ganhos entre
financistas continuava. “Foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista,
para fazer o país virar capitalista”, gabou-se Lula certa vez.
Do pau de arara ao Lulismo
A declaração acima exibe a
sustentação do pacto social proposto por Lula e um laço com a própria história
que ele nunca abandonou: a conciliação a ser promovida por alguém que soube
manter como ninguém a imagem de homem do povo e de sindicalista, mesmo ocupando
o mais alto posto do poder. Lula, no fundo, nunca foi socialista. Pelo menos
não um socialista no sentido clássico. O resto, porém, é verdade. Menino do
sertão pernambucano, passou fome e privações. Foi de pau de arara com a mãe e
os irmãos para São Paulo. Morou nos fundos de um bar. Usou o mesmo banheiro que
a freguesia. Ascendeu graças ao curso de torneiro mecânico no Senai. Virou
metalúrgico. Perdeu o dedo num acidente na fábrica. Ingressou no movimento
operário. Passou a líder sindical capaz de mobilizar multidões e ser perseguido
pela ditadura militar. Aprendeu na mesa de bar que nacionalismo é uma virtude.
Lula tentou três vezes chegar
à Presidência da República. Perdeu para Fernando Collor de Mello em 1989 e duas
vezes para Fernando Henrique Cardoso – em 1994 e 1998. Somente na quarta
percebeu que, com suas origens e seus discurso, tenderia a perder mais uma vez
ou, se vencesse, seria um candidato natural a engrossar a lista dos governantes
brasileiros apeados do poder de uma forma ou de outra. Uniu-se então a um
partido de centro-direita, anunciou um candidato a vice de extração
empresarial, assinou uma carta-compromisso com garantias ao capital e
declarou-se o candidato da paz e do amor. Mais tarde perderia boa parte de seus
eleitores tradicionais, decepcionados com as crises políticas e as denúncias em
torno do mensalão, mas compensou essas perdas com a conquista do voto dos mais
pobres. Se até 2002 seus eleitores eram sobretudo aqueles de nível superior de
escolarização, dos estados mais urbanizados e industrializados, Lula passou a
contar com a adesão dos mais pobres e excluídos. O Lulismo substituía o Petismo.
Lulismo foi como seu ex-porta
voz, o cientista político André Singer, chamou o subproletariado que abrange
quase a metade da população. Para ele, são pessoas movidas principalmente por
duas emoções: a esperança de que o Estado possa moderar a desigualdade e o medo
de que os movimentos sociais possam gerar a desordem. A instabilidade é um
fantasma para os pobres, seja qual for a forma que ela assuma – a luta armada,
a inflação dos preços ou as ações da indústria. Enquanto Lula se mostrou
identificado com a esquerda e a possibilidade de colocar a ordem em risco, foi
preterido igualmente pelos muito pobres e pelos muito ricos.
Para outros, Lulismo passou a
ser sinônimo do carisma exibido por Lula. Uma espécie de variante do
bonapartismo, expressão cunhada por Karl Marx no livro “O 18 Brumário de Luís
Bonaparte” para definir o líder que paira acima dos conflitos das classes. Ou
uma variação do varguismo, referência a outro líder que também emanou da base
empobrecida da sociedade, concedeu atenção especial ao salário mínimo e
entendia como ninguém dos códigos populares. Mas se Getulio Vargas foi um
golpista e depois ditador até voltar democraticamente eleito e suicidar-se em
1954, Lula cresceu politicamente ancorado exclusivamente nas instituições
democráticas. Saiu, nunca é demais repetir, com uma aprovação popular inédita,
capaz de eleger uma noviça na política e ajudar a transformá-la na continuidade
do Lulismo. Uma continuidade, porém, com vida, identidade e força próprias,
mesmo sem negar seu arquiteto.
Por iG São Paulo
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