Uma das funcionalidades mais populares dos aplicativos de mensagens instantâneas, como WhatsApp e Telegram, são os grupos de discussão. Além de congregar familiares e colegas de trabalho mais próximos, a ferramenta passou a ser utilizada também como forma de viabilizar a organização e compartilhamento de ideias entre pessoas que não necessariamente se conhecem tão bem: fã-clubes, moradores de um mesmo bairro, trabalhadores de diferentes departamentos de uma determinada empresa ou órgão público, interessados em um mesmo tema.
Em um grupo que reunia os proprietários de imóveis em um condomínio no Distrito Federal, um morador veiculou críticas em relação à empresa responsável pela sua administração. Quando tomou conhecimento das críticas feitas, a empresa decidiu processar criminalmente o morador, argumentando que ele a teria difamado perante “várias pessoas”.
Difamação é um crime previsto no artigo 139 do Código Penal brasileiro, com pena de detenção de 3 meses a um ano. Para que alguém seja condenado por difamação, é necessário que se julgue que a afirmação foi feita com a intenção de causar descrédito perante outros. Há uma série de discussões, do ponto de vista de política criminal, sobre a conveniência da existência de um crime para punir esses casos; afinal, isso não poderia, por exemplo, coibir a circulação de discursos críticos a poderosos?
Diante do caso, a juíza do 1o Juizado Especial Criminal de Brasília julgou que o morador não tinha a intenção de difamar a empresa, mas, ao contrário, estava apenas compartilhando suas críticas e insatisfações, em um legítimo exercício de sua liberdade de expressão. É interessante que ela tenha colocado a discussão nesses termos, já que nossas pesquisas têm indicado que o Judiciário tem agido com leniência em relação a pedidos que relacionados à honra e a imagem de algo ou alguém. A juíza, assim, rejeitou a queixa da empresa, pondo fim à ação.
O caso levanta questões interessantes para os milhões de usuários desses aplicativos no Brasil. Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de uma empresa ter tentado responsabilizar criminalmente um cliente insatisfeito. Se pensarmos na variedade de temas sensíveis que são discutidos nesses grupos, como as condições de trabalho oferecidas pelo empregador, a qualidade das aulas de determinado professor, opiniões sobre políticos e autoridades públicas, ou ainda serviços públicos como um hospital ou uma delegacia, é preocupante imaginar que manifestações de opiniões nesses espaços, tidos, muitas vezes, pelo usuário, como relativamente privados, possam abrir caminho para um processo penal.
Mas a questão não é tão simples: sabemos também que é em grupos de aplicativos de mensagem que vêm se disseminando conteúdos ilegais e extremamente lesivos como imagens e vídeos de pedofilia, de imagens íntimas não consentidas, etc. Ao contrário do que ocorre quando esses conteúdos estão na web, e portanto hospedados em algum servidor identificável, eles são rapidamente compartilháveis e ficam armazenados nos aparelhos de todas as pessoas que fazem parte dos grupos. E, por mais difícil que seja a contenção do compartilhamento desses conteúdos, os usuários que o fazem podem ser responsabilizados, como vem ocorrendo conforme constatamos em nosso livro sobre revenge porn no Brasil.
É evidente que transformações tão radicais nas nossas formas de comunicação repercutem nos problemas que o direito tem que enfrentar. De um lado, é importante pensar nesses espaços também como ambientes de discussão, nos quais a liberdade de expressão deve ser protegida, sobretudo em situações como a desse caso, em que uma empresa tenta usar a via criminal para constranger clientes. De outro, é um desafio pensar em formas de minimizar a apropriação desses espaços para promover a disseminação de conteúdos ilegais ou lesivos. Em um momento em que se discute tanto a proteção do conteúdo das mensagens trocadas, em grupos ou não, dentro desses aplicativos por meio da criptografia, também é preciso avançar na discussão sobre como garantir a proteção à expressão frente a legislações (e interpretações) que podem representar formas de censura.
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